Na última sexta-feira (22/10), a Especialização em Literatura Infantil e Juvenil, uma parceria da Universidade de Caxias do Sul (UCS) com o Instituto de Leitura Quindim, promoveu um bate-papo incrível com a Dra. em Linguística Eliana Yunes, uma das principais referências na formação de leitores. Para iniciar o encontro, Eliana leu um texto de sua autoria que tratou sobre Mediação e Leitura. O texto pode ser conferido na íntegra, logo abaixo:
Mediadores e Leitura, por Eliana Yunes
Universidade de Caxias do Sul e Instituto Quindim, 22 de outubro de 2021.
“In medias res”, é uma conhecida expressão latina com algumas acepções e usos: em nosso campo de estudos, trata de “uma técnica literária em que a narrativa começa no meio da história, em vez de no início. As personagens, cenários e conflitos são frequentemente introduzidos através de uma série de flashbacks” diz o dicionário latino. Ou seja, a escrita principia justo “no âmago das coisas”, no centro delas. Talvez também a pudéssemos usar para indicar na leitura, o lugar dos mediadores: ali, no lugar mesmo do impasse entre uma textualidade qualquer - ensaio, conto, pintura, filme ou cena – e o leitor potencial, ponto em que o receptor oferece resistência à interação; bem ali onde pode acontecer... nada! Onde talvez tenha ocorrido um desencontro entre eles, por incompreensão mútua, ali mesmo e com muitos riscos, está o espaço em que se define o mediador, aquele que promove o reencontro!
Pensando bem, para um animal que nasce em absoluta fragilidade, a ponto de não nos surpreender que uma loba possa ser o penhor de sobrevivência de lendários gêmeos humanos, é de se esperar que ele precise aprender quase tudo no mundo, depois do instintivo sugar; e, como tal, precisará de um mediador para coisas que mais tarde parecerão as mais triviais: sonorizar, pôr-se de pé, andar, vestir-se, falar, além de outras menos óbvias: abraçar, comprometer-se, fazer justiça, ter gratidão. A mediação é a ponte levadiça que se estende do castelo interior de cada um em direção ao outro, este desconhecido que, no entanto, garante que eu possa ter ideia de quem sou.
É sobre alteridade – disto estamos falando, agora – que muitos filósofos contemporâneos como Lévinas, E. e Baumann, Z. trouxeram reflexões que podem interessar aqui, uma vez que este outro – o tal próximo que tanto pode ser inferno para Sartre, quanto paraíso para W H Mãe, - representa o si-mesmo que não pode contemplar-se, porque não logra se ver de fora, como uma terceira pessoa: é o tu que me dá a ver quem posso ser, quem estou sendo, como só é possível ver a uma personagem no meio de uma história – in medias res – com a qual, percebendo similaridade, eu possa ter um insight e ver-me identificado. Assim, sem o outro, não sou, não posso (re)conhecer-me.
Desta noção complexa, isto é, com desdobramentos, um outro estará sempre entre eu e o mundo como mediador. E não necessariamente como O mediador que saiba ajudar a entender o jogo da cultura que me cerca, como guia ante o desconhecido, mas certamente como um possível educador, um ex-ductor, que saiba conduzir para fora a potência ignorada que o outro tem, levando-o ao encontro de alguma troca ou reciprocidade. Pois não é possível ignorar que o mediador tem um papel relevante quando leitor e texto, por exemplo, vão de encontro: “não, não é possível um peixinho morrer afogado”; “não faz sentido a mulher comer uma barata” – ali cabe ao menos uma pergunta : será?
Caminhamos no sentido de admitir que o mediador de leituras pode ser de uma espécie singular, mas pertence a um gênero bastante presente no cotidiano da vida humana, em que somos aprendizes permanentes. Inclusive este, de sermos mediadores para quem precisa aprender a pedalar sobre duas rodas, ou para quem deve agilizar a soma, mentalmente. Aliás, isto bem pode ser algo de grande prazer, esta prática platônica da pedagogia, a de caminhar ao lado de quem cresce e aparece.
Em que artes se envolve o mediador frente ao receptor que esgrima um quadro de Picasso ou Mondrian, um texto de Guimarães ou de Itamar Vieira Jr.? Ou talvez de Bartolomeu C Queirós ou de Roger Mello? Não há idade para aprender ou parar de aprender: durante esta pandemia, a quantos amigos recorremos para lidar com as novas tecnologias em que o isolamento e a solidão nos jogaram? As diferentes plataformas e seus diferentes processamentos revelaram nossa dependência de outros, assim como nossos saberes disponibilizáveis para muitos.
No caso específico que nos reúne aqui, a questão é fazer se entenderem leitor e texto, leitor e autor, leitor e contexto. A questão começa por se saber – o lugar de fala – onde se situa este leitor que precisa descobrir-se para (re)agir. E nos perguntamos, para quê mesmo isto serve? No meio de um período em que a convergência de males sanitários e políticos agravaram o entendimento do mundo, em que tudo parece não ter sentido, justamente é o sentido a construir que pode nos tirar do imobilismo e do medo, este texto com muitas entradas e poucas saídas. Se não entendemos quem somos, onde estamos, com quem vamos e para quê, de fato, a vida se torna vegetativa, condição dos muitos deserdados da vida social, cuja herança parca é sobreviver.
Portanto, carecemos de interpretar o que nos acontece e decidir como queremos acontecer junto aos demais. Este texto do qual somos personagens é a própria vida. Que também é um conto, que que por mínimo que seja, se realiza em uma narrativa. Portanto, ao ler um texto nos livros, um quadro nas paredes de um museu ou uma pintura na empena de um edifício nas avenidas urbanas, estamos em exercício de entendimento do mundo, em um ensaio do pensamento que nos provoca o recôndito, as entrelinhas ocultas que o noticiário e a ideologia nos negam para manipular-nos.
Interpretar, igualmente, tem distintas acepções, desde compreensão, sintonia do sujeito com a realidade que ele quer penetrar e compartilhar – da ordem portanto, das subjetividades – até a noção objetiva que buscam as ciências naturais como uma explicação lógica, mesmo que pro-tempore.
A postura primeira corresponde, na reflexão acima iniciada, à admissão das intersubjetividades, de onde aquilo que o leitor carrega como seu repertório de conhecimento, obriga-o a “abrir a guarda”, desarmar-se para mais docilmente notar os pontos abertos à interação. Para quem a insignificância da tiririca é preconceito, não será possível vê-la mais importante que a jararaca e seu veneno, no clássico político de Ana Maria Machado para crianças.
A segunda postura exige uma análise comprovada de cada elemento identificado para restaurar a estrutura e entender seu funcionamento. É o que a ciência tem feito para entender o vírus que tornou o mundo , realmente, uma aldeia. São duas maneiras de lidar com a chamada intentio operis de U.Eco, “intenção da obra” que realiza tanto o caminho hermenêutico da exegese como o analítico, exercitado com o estruturalismo entre nós.
Contudo, nossa morada primeira – e a que menos contemplamos – é a morada do Ser que somos, e que se apresenta na e pela linguagem, este misterioso recurso capaz de identificar, falsear, fazer viver ou matar, tratado paradoxalmente como algo natural e automático. No geral, sequer sabemos de que falamos, ou do alcance e da amplitude do que falamos. Eis porque, ao aparecer em destaque, como na arte, a linguagem oferece seu lado surpreendente, oculto como o inconsciente que se revela através de uma falha e aponta um não-dito. Ao sairmos de um filme como Cortina de Fumaça, sobre um conto de Paul Auster, ou do desenho animado A Viagem de Chihiro, de Hayao Miyazaki, nos admiramos do que enfim se revela à compreensão de cada um: estava lá, na tela, mas já também aqui, comigo.
Não há, pois, leitura de caráter monológico, mesmo quando uma narrativa parece ser como a receita de um bolo a ser seguida até à expectativa prévia de consumo. Se algum detalhe pode não ser verossímil, ou antes reconheço algo como um dejá vu, o desencontro significante fica à espera de um significado a ser construído pelo leitor. Algo mobiliza a “opinião” do leitor, no mínimo pela dimensão ética que transparece ao leitor na forma de desconfiança. Explicitada por Iser, a interação depende do contexto, assinalado por Jauss, que nos abre olhos e ouvidos como partícipes da intenção do leitor, a intentio lectoris de Eco: eis aí o lugar e a experiência de quem lê, sua história com seu acervo de vida na construção do sentido. A coerência vai ser o divisor de águas quanto ao valor da interpretação.
Esta é, pois, a boa oportunidade de efetiva formação para um neoleitor de múltiplas linguagens e de amadurecimento para um mediador experiente, onde o diálogo é mais fecundo que qualquer teoria crítica in totum. Há contos que cabem à perfeição na morfologia de Propp, mas a consideração de passividade de A Bela Adormecida pode ser uma questão de entendimento do que seja a espera por cem anos, na construção imaginária do receptor!
Por outro lado, certas diferenças de ponto de vista sobre o mundo, sobre uma situação específica como a da mulher, seja em Madame Bovary, seja em Quarto de Despejo, obriga o mediador a trazer presente algo que por muitas razões pode escapar ao neófito leitor. Há um material histórico que implica certos condicionamentos em uma escrita, sem que seja preciso haver uma concessão do autor: a intentio auctoris, nomeada por Eco, pode emergir de um entorno que não acompanha o leitor em outros tempos e pode até mesmo preceder o próprio texto. A figura de um mediador amplia, neste horizonte, a visão dos leitores em formação, com a noção de historicidade, tanto do texto/autor, como do leitor/mundo, que entram em fusão de horizontes, na expressão da Gadamer, para ampliar a fruição do texto, na sequência do deslocamento do olhar.
Todo este intróito sobre mediador tout cours é para preparar a entrada no recorte específico que me propuseram, o do livro infantil e a mediação. E tem mais razão de ser do que parece:há três décadas repetimos que literatura infantil não é apenas para crianças e jovens, como se houvesse uma menoridade no caso do literário. Há cuidados imprescindíveis, obviamente, como o de sua extensão e estética, incluída a imago completa do objeto livro e um ponto de vista da narração que compense com “largueza”, com latitude o que certa longitude não permite alcançar.
Uma literatura infantil, substantivo antes que adjetivo, é capaz de seduzir adultos mesmo que não haja crianças ao redor. Sua qualidade permite, por exemplo, hoje, que já não tenhamos que explicar porque há doutorados e editores, críticos e antropólogos interessados em acompanhar a arte produzida para os ditos infantes.
Claro que educadores, às vezes, também se ocupam dela como vigilantes de temas e tratos que ela pode lhes dar. Compreensível. Uma narrativa como Round 06 faz o mais empedernido defensor das liberdades e anti-censura, pensar no limite que lhe cabe prover e porquê. Em função disto tudo, o mediador há que conhecer o leitor e suas circunstâncias para lhe propor uma leitura. No caso de ele mesmo eleger e se embaraçar no que lê, não é necessário escamotear a discussão, por exemplo, do incesto em Pele de Asno, como se a pedofilia e o abuso não ocorressem nos afetos e no corpo da infância.
Uma leitura em voz alta, com as páginas do livro folheadas, pode ser rico e soar com uma inflexão dupla, da imagem e da sonoridade, acordando sentimentos e imagens que interrogam e criam entendimentos e perplexidades. Um texto “infantil”, como todos os demais não-infantis, não se restringe a uma só leitura ou interpretação, exceto quando ela é dogmática, moralizante ou discriminatória. Assim o trabalho de um pedagogo digno desta etimologia, será o de um mediador, que ao lado da criança acompanha seu olhar, sua pergunta e a ajuda a caminhar por conta própria, sobre novos horizontes. E diante do silêncio, perguntar-se. O que precisa ser movido é o imaginário, para que ilumine o simbólico sempre em luta com o lugar comum.
Uma tarefa que cabe ao mediador, e por certo não menos importante, talvez seja a de selecionar livros, obras, situações com as quais a criança possa entender suas dúvidas e falar sobre elas. Os livros podem ajudar a que elas falem do que vivem e talvez não possa ser confessado. Esta dimensão política do texto não pode ser subestimada. Ela humaniza, desrobotiza, provoca a que o sujeito venha à tona e se integre, de fato, à vida social. A leitura exercita a mente e o espírito humano, e não apenas metaforicamente, uma vez que a ciência já descreveu as conexões elétricas e químicas do cérebro através das sinapses que estabelecem as relações de comunicação a ser feita e a mensagem que precisa ser enviada pelos neurônios. A leitura é um exercício cerebral, por excelência, com efeitos sobre o corpo e suas ações.
Pensemos na sedução que os traços e cores, a textura do papel e a capa exercem, para grandes e pequenos, nos mostradores das livrarias ou das bibliotecas: a observação, os detalhes, os flagrantes, as curiosidades vão trazendo o interesse sobre o objeto em conexão com a descoberta dos interesses subjetivos. Daí que a variedade dos textos, a diversidade dos temas e personagens constituam um banquete capaz de apurar o gosto, o sabor da palavra e a capacidade de estabelecer relações entre as coisas do mundo, entre si e o mundo: nisto consiste a própria ideia de leitura.
Ingênuo seria supor que as crianças não aportam à leitura, sentidos surpreendentes, além de poéticos, na medida em que não estão inteiramente submetidos à lógica dos valores que imperam na sociedade em que vive. Por isso elas também fazem uma espécie de mediação para o mundo adulto resgatar memórias e sonhos. Mais que decifrar sinais, o ato de ler oferece um acesso ao mundo e o renova em seu design. Ou, como nos lembraria Borges, porque continuaríamos reescrevendo a meia dúzia de histórias que temos em verdade, sobre o amor, a morte, a felicidade, a dor, a traição? A leitura renova o mundo e a vida humana com a ruptura dos horizontes dados. E as crianças pequenas, assim como as que vivem em nós crescidos, são as mediadoras do porvir.
O mediador não exerce a função de depositário de sentidos prontos na mente infantil tomada como tábula rasa. Crianças são sujeitos de sentido que anseiam por uma vida plena, que se oferece de início, nos vínculos humanos das relações de família, de amizade, de solidariedade ainda visíveis, seja na experiência relacional, seja na fruição estética. Conta mais a formação que se vivencia sem que se saiba o nome, que a informação nomeada; importa mais a relação afetiva que os conteúdos cognitivos; mais o entendimento do outro e do meio em que vive, que o conhecimento científico descolado da vida.
O mediador na fase da infância não é para os textos apenas, mas para seu contexto histórico concreto. Trata-se de estimular uma inteligência sensível, questionadora, mais que ratificar a matriz racionalista dos registros que o Google já guarda. A arte não mata a ciência, as sensibilidades não descartam as habilidades: a leitura do mundo vai e volta à palavra sem que o dicionário dê conta das experiências todas em seu verbete.
Tudo isto para dizer afinal algo básico e simples: não há mediador que antes não seja leitor experiente, nem mesmo diante de crianças que pela primeira vez tomam um livro nas mãos e na delícia de descobrirem as imagens, já interpelam o mundo. Por isso, a seriedade da mediação: se não leu antes, atentamente, o conto de cinco páginas Chapeuzinho Vermelho, do Perrault, como Fita verde no Cabelo, de Rosa, poderá fazer sentido, com suas duas páginas? O mediador em exercício realiza sua formação continuada, enquanto lê-com, não apenas porque lê-para.
Sua experiência, por fim, não o torna presunçoso de seu conhecimento, que sabe o que o outro teve menos chance de aprender, mas se reconhece a caminho, aprendiz permanentemente, enquanto vida houver, enquanto literatura e arte encontrarem novos suportes e novas expressões. A mediação entre a infância e o livro é uma prática de felicidade compartilhada.
Referências da autora:
Emanuel Lévinas. Ética e Infinito. Lisboa: Edições 70, 2007
Zigmut Bauman. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio: Zahar, 2004
J.P.Sartre Huis clos (Entre quatro paredes,), Rio: Civilização Brasileira, 2005
Walter Hugo Mãe. O paraiso são os Outros. Lisboa: Biblioteca Azul,2018
Mario Quintana. Sapato Florido. Rio: Globo, 2005
Clarice Lispector . A paixão segundo G H. Rio: Rocco, 2020
Umberto Eco Lector in fábula: A cooperação interpretativa em textos narrativos. São Paulo: perspectiva, 2004
Ana Maria Machado A Jararaca, a Perereca e a Tiririca. São Paulo: Cia das Letrinhas, 2016
W. Iser. Ato de leitura São Paulo: 34 Letras, 1996
R.H Jauss A literatura e o Leitor: textos de estética da Recepção. São Paulo: Paz e Terra, 1979
H.G.Gadamer. Verdade e Método: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, 2002
J.L. Borges Borges Oral . Lisboa: Vega s/d
A live na íntegra pode ser conferida abaixo:
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